segunda-feira, 13 de julho de 2009

OS DIAS DE CUIMBA

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MEMÓRIA
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ENTRELINHAS DE UMA MEMÓRIA
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OS DIAS DE CUIMBA 5
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O adensar das suspeitas centrava-se nos homens do serviço de Intendência, cujas tarefas, por vezes desagradáveis, mas necessárias ao bom funcionamento do Batalhão, eram praticadas com alguns laivos de crueldade. Apesar disso, fazíamos questão de as presenciar, como forma de quebrar a rotina do dia-a-dia.
A sempre emocionante chegada do gado bovino e o seu encerro eram momentos de grande adrenalina a que não resistíamos. Também nos dias de abate acontecia juntarmo-nos vários militares, desta vez na esperança de conseguirmos um ou outro pedaço do bicho: fígado, coração ou rins, sempre davam para confeccionar um petisquinho a que juntávamos alguns pedacinhos de testículo sempre que animal era inteiro. Temperávamos depois com o tradicional “gindungo” e um pouco de cerveja angolana. Confeccionada por nós, esta era uma iguaria de que ainda hoje tenho saudade.
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Mas era no dia do abate das aves que o sadismo de alguns soldados mais denunciava a possível insanidade mental.
A “coisa” funcionava em regime de apostas.
Cada apostador depositava na mão do “caixa” uma quantia previamente estipulada, de seguida pegava num frango e ocupava o seu lugar ao longo da linha de partida. Pescoço da ave na mão esquerda, na direita um canivete afiado. À voz de comando, todos os pescoços eram cortados e as aves atiradas para a frente. Já mortos, com o sangue a jorrar para todos os lados, os animais percorriam alguns metros sob os “gritos de incentivo” dos seus algozes, até se quedarem exangues. Era agora altura dos apostadores, de olhar atento, recorrendo se necessário à fita métrica, encontrarem o vencedor desta maquiavélica corrida.
Tornavam-se também frequentes as discussões e zangas que por vezes chegavam a vias de facto, obrigando à intervenção do comandante. Este, por sua vez, chamava os contendores, lia-lhes o R.D.M. (Regulamento de Disciplina Militar), informava-os sobre a gravidade do acto, a dimensão da pena e o quanto isso viria a prejudicar a sua vida futura.
Acredite-se ou não, todos preferiam trocar a pena por um bom par de bofetadas! Como vivia paredes meias, ouvia perfeitamente o desenrolar do diálogo, bem como o seu desfecho.
Ficou por isso célebre a frase que todos temíamos: “Entra e fecha a porta…”
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Da esquerda para a direita: João, Gaspar de Jesus. Faria e Cadaval
Uma amizade com 45 anos
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Apesar disso, não tenho dúvidas de que era um grande comandante!
Passo a explicar.
Uma vez que o voleibol era o seu desporto favorito, providenciou a construção do recinto para o efeito e a constituição da equipa de que era o capitão. Um dia chocou com um colega e caiu, daí resultando várias escoriações nas pernas e braços. Esteve vários dias sem sair de casa. O soldado interveniente no lance mostrava-se culpado e temia o castigo. Sabedor disso, o comandante mandou-o chamar para lhe dizer que não estivesse preocupado, que ele não tinha culpa, que quem anda à chuva molha-se, etc.
Algum tempo depois providenciou a construção de uma mini-piscina. Quando o dia da inauguração chegou, alguns oficiais posicionavam-se para, conjuntamente com o comandante, serem os primeiros a mergulhar, mas do alto da sua imponente figura (chamávamos-lhe Jack Palance), o comandante sugeriu que fossem os seus construtores a inaugurar a obra.
Outra das facetas é que, sempre que lhe era possível, deslocava-se a Luanda para visitar a família e por mais de uma vez regressou acompanhado de algumas caixas de sardinhas que muito contribuíam para perfumar de odores e sabores o nosso almoço. Posso também acrescentar que em Cuimba, e durante a vigência do BC670, encontrei a melhor alimentação servida pelo Exército português.


6 comentários:

Carmem Dalmazo disse...

Barbaridade!...
Que post interessante... Gostei...

Beijão!!

Marco Reis disse...

Olá Gaspar.
Tenho acompanhado os seus posts através dos feeds que recebo. Não tenho comentado, porque há coisas em que é melhor só ouvir (ler)!
Só mesmo passando pelas coisas é que se consegue fazer uma descrição tão pormenorizada.
Abraço

Carmem Dalmazo disse...

Pois é Gaspar...
Aki não é outono...o inverno já chegou...e congelante...rsrs
Mas apetece ficar quietinha pertinho da lareira escrevendo.
Mas lembrei do inverno também no outro blog... "As vezes céu azul"...
O teu Blog continua sempre lindo e surpreendente...

Beijo
Obrigada pelo carinho!

Gaspar de Jesus disse...

Muito obrigado amigos CARMEM e MARCO.
Fico feliz por me seguirem com todo esse interesse e carinho.
G.J.

Unknown disse...

Oh Gaspar, ainda eu pensava que a luta de galos que se praticava em Timor era violenta. Afinal, perto deste desporto maquiavélico a que chamarei "corta pescoços" aquelas lutas parecem agora brincadeirinha de crianças.

Continuo a seguir com muita atenção as memórias deste soldado, até porque me fazem recordar a minhas próprias.

Obrigado pela partilha.
GINA

Gaspar de Jesus disse...

Obrigado GI pela visita e amável comentário.
Bjs
G.J.

5ª TERTÚLIA A 02 DE JULHO

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COM A ARTE NO OLHAR